terça-feira, 2 de junho de 2009

Sobre o sono




Dormir me ofende
É sempre uma humilhação, uma violação
É sempre um empurrão pra mim
Nunca um mergulho

É que dá muito trabalho se render daquele jeito
É íntimo demais e dá trabalho ainda
Além de ser íntimo, eu nem sei com quem "estou fazendo"
Você entende.

É como a estuprada no beco
Rendida a força, sem força. Jogada
A ela coube apenas desligar a televisão e aumentar o volume da paciência até o máximo
Para no dia seguinte remontar sua civilização e lacrar o asco com o zíper do vestido
Pintar a fachada com batom e...

Bem, eu não espero sonhar enquanto eu durmo
Sonhar é brincar de tolice
Não quero pirulito, nem pipoca doce
Não será tão fácil calar minha boca

Não quero piedade.
Não me venham com essas anestesias
Levem daqui este banquete mental que é o sonho
Premissa estúpida para drenar um pouco de minhas fundações
Mais um passo e cuspirei em todos.

Não quero este circo
Sem malabarismos para entreter os torturados, por favor
Sem último pedido aqui, senhor. Ligue logo esta cadeira elétrica
Poupe-me do entretenimento barato

Dormir.
Sou só eu que quero esconder, até dos gigantes, minhas vergonhas de nudez?
Só eu que duvido do imaterial?
Não consigo não tapar a genitália com as mãos quando os iluminados se aproximam
Não sei o que esperar.
Aquela luz que os engrandece é a mesma luz que oculta-lhes a face

No fim, eu os vejo como velhos abutres em um poste
Esperando eu cair no sono para bicar minha superfície metalizada
Gastei anos esculpindo em mim a armadura perfeita
Fiz poços e armadilhas
Labirintifiquei minha alameda
Ergui um castelo bélico sobre minha planíce de brincar
E eles vêm, querendo arrancar de mim o elmo e a malha de ferro
Me expor ao ridículo pior
Querem rir de mim enquanto estou desacordado

Sono é um ritual
Todo ele.
Desde a hora que você aceita aqueles trajes
Naqueles trajes simples estão escondidas as formalidades de oferenda

Então você caminha e levanta as cobertas do altar
Essa é a hora que você diz "Aqui estou! Suga de mim a consciência!"
"Ela e meu corpo são teus"
É o ajoelhar que antecede o punhal

E minhas posses, como ficam?
Penso que seria mais seguro trancar não só a porta do quarto, mas também a dos armários
Não quero gigante-abutre-rato nenhum roendo minhas memórias
Minhas meias e ternos... E se roubam?
Não, isto seria demais.

Já basta a dignidade que me roubaram a muitos anos
Quando assinei o contrato de humanidade
Por qual motivo eu me rendi a tais termos?
Ah! Malditos que se aproveitam das células inocentes!
Parece que não importa o quanto eu me erga, eles sempre se certificam de me demolir todo no fim da noite

Mas veja só! Achei a vulnerabilidade que eu estava procurando
Pela fresta de uma fechadura, eu vejo o medo que eles escondem de mim
A escada que eu ergueria em apenas duas noites seria o suficiente para alcançar o topo das nuvens
Duas noites.
Apenas duas me seriam suficientes
Invadiria o palácio, queimaria os vinhedos

Punhal nos gigantes
Orgia com as gigantas-abutres-ratazanas-deusas
Só depois eu iria, nelas também, com meu punhal
E fim da ditadura do sono
Eles sabem, é claro. Por isso me submetem a esta vida de prisioneiro
Drogam o que há de mais bestial em mim. Em doses diárias.

Ah, se eu tivesse esse tempo a mais para executar meus planos!
Mas meus olhos estão caindo e...
O furacão silencioso começa a levanta meus cabelos devagar
E o terremoto com maciez de travesseiro me acolhe, sereno
Abraço cínico de planta carnívora e...
São eles! Vieram buscar minha virgindade novamente!
Saiam de meus labirintos! Soltem meus ternos!
Vão embora! Eu...

...

Pela manhã, me dou conta de minha derrota
As olheiras sob meus olhos são minhas tatuagens de vida tribal
Negras violadas foram expostas desta mesma forma
Sou um homem com coração de garota espancada.

Toda noite tenho uma guerra marcada, uma cruzada
A Lua se aninhou nas estrelas
Este é o sino que marca o início do jogo
Escolho ser a presa que foge
É só o que posso fazer. Não serei bezerro de sacrifício.
Eu corro. Mas essa carnificina diária corre mais rápido que eu.

Meu cansaço é minha sina de derrota
Minha sina me força a um empenho inútl
Meu empenho move a boca dos gigantes
E eles riem

6 comentários:

  1. Nossa, tu escreves bem mesmo, de uma perspectiva das coisas assim, inusitada. E as imagens, as imagens. uuuh

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  2. :O

    Lindo lindo lindo lindo lindo!
    Maravilhoso.

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  3. nunca tinha visto o sono por este ângulo.
    vou revê-lo de uma forma diferente hoje.

    (isso sim é uma mente inquieta) =)

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  4. Uau...vc é boa com isso. Schopenhauer fala que "... as obras são a quintessência de um espírito: em consequência disso, por maior que seja o espírito, elas terão sempre uma riqueza de conteúdo maior do que a possibilitada com o contato com o autor e substituirão sua companhia no que é essencial...". Bom...eu não tenho a sua companhia mas, tudo bem, ainda me resta a sua obra. Belíssima obra...

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